Qual é o dever de casa que as cidades precisam fazer antes de flexibilização do isolamento?
Qual é o dever de casa que as cidades precisam fazer antes de flexibilização do isolamento?
Hoje é dia 1º de Maio, dia do trabalho, e os trabalhadores de nossa cidade, Poços de Caldas receberam um grande “presente”, comércio aberto após mais de um mês sem poderem funcionar, ainda que o delivery sempre tenha sido possível e amplamente utilizado, além dos serviços essenciais como supermercados e farmácias.
Enfim, de acordo com a OMS, a principal e mais efetiva medida para conter a pandemia é o isolamento social e isso se torna o grande desafio para a produção e consumo. E sabemos que a pandemia não acaba em 2020. Mesmo no melhor cenário, não há retorno à “normalidade”, salvo a inovação tecnológica.
A nossa constituição deixa a cargo de estados e municípios se organizarem quanto às Políticas de isolamento, com isso, evidentemente a pressão cai sobre os gestores municipais, que estão mais próximos especialmente dos pequenos empresários, que possuem negócios mais suscetíveis a uma interrupção.
É este o momento da gestão pública se mostrar efetiva, a Política envolve interesses econômicos e sociais sempre, mas a saúde pública tem que ser prioridade, afinal o primeiro objetivo de todo governante é proteger a vida de seus cidadãos.
Mas dá pra conciliar as duas coisas?
Opa, claro que sim, estamos em 2020, existe ciência, técnica, estudo, experiências e melhores práticas largamente disponíveis, basta o Prefeito escolher entre lançar mão delas ou ceder às pressões e ficar torcendo pelos menores impactos ou conseqüências.
Quando se coloca priorizar economia ou saúde, há o pressuposto de que não há nenhum outro modelo possível para ser construído – isso é uma afronta à criatividade humana e social.
Se não houver um modelo social que responda à economia e também à saúde, é porque somos bem limitados, o que não é verdade. Uma sociedade moderna não pode ser isto ou aquilo, não pode ser economia ou saúde.
Vamos ver algumas práticas então?
Primeiro temos os aspectos epidemiológicos de saúde pública, informação é tudo na epidemiologia, então acompanhar o rastreamento dos casos e as evidências científicas do vírus é a primeira medida. O deslocamento do vírus segue algumas tendências, o que houve na Europa e na Ásia é um exemplo claro do que vem ocorrendo no Brasil e, a partir disso, podemos prever quando e em que intensidade pode-se encontrar um pico na cidade e conseqüentemente um colapso no sistema de saúde.
O desenvolvimento de sistema robusto de geração de relatórios: coleta e compartilhamento de dados, pode ser feito em parceria com várias organizações que estão disponibilizando gratuitamente plataformas para o monitoramento dos casos.
Um portal muito rico em informações, por exemplo, é o coronacidades.org.
Além de acompanhar o que ocorre externamente é importante fazer o preparo interno de saúde pública, que é principalmente ter hospitais equipados e leitos disponíveis, além de equipe de fiscalização de vigilância capaz de dar conta da população correspondente e gerando informações em conformidade.
É fundamental ter ao menos 03 leitos de UTI devidamente equipados para cada 10 mil habitantes (devendo chegar a 1 para cada mil habitantes em momentos de epidemia) e também ter ao menos 1 fiscal para cada 10 mil habitantes.
Outra questão importante é o sistema de notificações, se a cidade possui poucos testes não é possível precisar nem de perto o tamanho do problema, Minas Gerais tem muito menos casos que os Estados vizinhos São Paulo ou Rio de Janeiro, mas antes de comemorar, veja que o número de testes realizados também é muito menor (MG 476, RJ 579, e SP 743 testes por milhão de habitantes até dia 26 de abril) um caso provável de subnotificação.
A técnica diz que o Município deve apresentar diminuição de casos com paralelo aumento da testagem na população por ao menos 14 dias, e neste mesmo período ter redução de mortes e transmissão comunitária, para depois pensar em reabrir comércio.
Se o Município não tem essas condições, tem que correr atrás antes de pensar em flexibilizar o isolamento. Então o que pode ser feito? Criar uma estrutura para rastreamento e aviso de contato com o uso de dispositivos móveis e expandir a capacidade de testes, através da parceria com Universidades para avaliação da prevalência e incidência de casos e projeções.
Medidas econômicas pré-flexibilização. Com o crescente aumento do desemprego muitas pessoas e famílias ficam sujeitas a uma situação de vulnerabilidade que precisa ser prioritária, para evitar um impacto ainda pior na economia. Então Políticas de subsídios às empresas e programas de transferência de renda precisam chegar antes da flexibilização, evitando que a necessidade seja tão alta que faça com que as pessoas entendam que vale a pena correr os riscos.
Outras ações como de segurança alimentar são urgentes, as crianças ficaram sem a merenda das escolas, muitos adultos se alimentam no trabalho, barriga vazia faz com que qualquer um encare o vírus.
E os estudos apontam que em situação de pandemia a crise econômica é uma conseqüência natural, as pessoas seguram mais para gastar, então preparar os estabelecimentos, especialmente os pequenos negócios, para uma crise longa em que os empreendedores deverão se reinventar para que seus negócios sobrevivam, também é papel da prefeitura através de políticas de proteção e fomento.
Outra questão importantíssima é que a flexibilização deve ser GRADUAL, pois existe um sistema todo construído pelo isolamento que se quebrado de maneira brusca vai criar machucados ainda piores no tecido social. Se as creches e escolas estão fechadas e os idosos como grupo de risco não devem cuidar das crianças, como essa força de trabalho vai voltar às atividades em tempo integral?
Tem que ser com poucos horários e com agendamento prévio sempre, não há lógica em retomar um serviço de atendimento ao público para gerar aglomerações e filas. E existem pelo menos vinte segmentos diferentes com graus distintos de relevância social, deve-se sempre priorizar aqueles que promovem saúde antes daqueles que cuidam de outros aspectos da vida social. Os templos e igrejas, por exemplo, bem como os bares e danceterias e demais negócios que cuidam do espiritual ou do lazer devem ser os últimos a serem permitidos, pois sujeitam as pessoas a ficarem mais vulneráveis ao contato físico e à fragilidade emocional.
Ah, mas às vezes o município é pequeno demais para arcar com tantas responsabilidades. Então aí entra a figura dos consórcios municipais, toda boa prática de gestão pública passa necessariamente por uma dimensão em rede que atravessa divisas municipais, afinal é um problema muito maior para enfrentar. Iniciativas nesse sentido têm sido inclusive premiadas, com cidades fazendo um acompanhamento muito próximo de informações dos indivíduos infectados como: por onde passaram e com quem tiveram contato e mais com ações econômicas conjuntas como: a aquisição de equipamentos, insumos e materiais como respiradores, luvas, máscaras, EPIs, além de atuarem em rede com equipes de saúde, segurança e assistência social. Essas ações também são necessárias antes de medidas como abertura de comércio, até porque a definição de abertura de comércio em uma cidade acaba impactando nas cidades vizinhas, e promove deslocamento de pessoas e conseqüentemente faz o vírus circular.
Falando em deslocamento de pessoas, uma situação preocupante é sobre as cidades que dependem do turismo, que é um dos setores que mais vai demorar em se recuperar. Retomar o comércio não vai resolver isso, as pessoas não vão viajar, então a solução é incentivar alternativas que movimentem a economia, como: transmissão de atrativos por meios virtuais mediante contribuição financeira, estímulo ao delivery de alimentos, artesanatos e produtos típicos, adiamento de eventos ao invés de cancelamento, políticas de bônus para reservas antecipadas e a possibilidade de fazer manutenções e re-planejar atrações. Para isso a Prefeitura pode e deve promover premiações e incentivos aos negócios do segmento turístico, e parcerias como com o sistema S, (composto por SESI, SENAI, SEBRAE, SESTSENAT, etc).
A falta de informações é ainda um desserviço, prefeitos as vésperas de uma nova eleição, por vezes preferem vender a ilusão de que tudo voltará “ao normal” ainda este ano, fato que contraria tudo o que os especialistas têm falado, pois o pós- pandemia será somente após a vacina estar aprovada e disponível.
As informações ocultas também afetam a população, os boletins epidemiológicos devem ser claros e porque não, trazerem também uma atualização dos investimentos da Prefeitura no enfrentamento.
Uma vez satisfeitas essas condições, o Município poderá monitorar com segurança as medidas de flexibilização de maneira a poder tomar medidas que aqueçam a economia sem comprometer a saúde pública. Então fazer o dever de casa vai muito além de escutar os diferentes grupos de interesse da cidade, é necessário trabalhar muito aproveitando o que há de melhores práticas, para promover bem estar social evitando que vidas sejam sacrificadas para isso.
Yula Merola – Doutora em Ciências, professora universitária.
Lucas Menezes Della Testa – Administrador Público, Especialista em Governança e em Políticas Públicas.